Amadorismo e postura amadora no canto coral

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O canto coral é essencialmente amador no mundo todo. Os corais centenários da Europa e os principais coros do mundo são compostos por estudantes, membros da comunidade e alguns músicos contratados. Entretanto, o que os diferencia é a postura dos integrantes.

Cenário Mundial

Alguns países possuem ampla cultura coral e se esforçam na realização de censos que avaliam a conjuntura da atividade nas regiões. Destacam-se a Chorus America nos Estados Unidos, a Choral Canada, no Canadá e o Europa Cantat na Europa. Essas organizações fazem publicações periódicas com informações sobre a atividade coral em seus países.
Esses censos sinalizam que a maioria esmagadora dos agrupamentos corais são amadores, revelando que a atividade é amadora na essência e que a entrega dos cantores e a boa organização das instituições são fundamentais para a perpetuação do gênero.
Apenas nos EUA, percebemos uma quantidade mais expressiva de corais profissionais, constituídos de cantores que recebem para cantar. Mesmo assim, a maioria dos grupos são amadores e voluntários. Inclusive, há mais grupos semiprofissionais que profissionais, que recebem quando há recursos, mas que também atuam quando não há. 
No Brasil, não existe nenhum órgão censitário da atividade coral, e ainda vejo pouco movimento das instituições na busca de informações criteriosas sobre a atividade. Isso aliena o público e não ajuda a posicionar a atividade no mercado.
De qualquer forma, há muita gente trabalhando na área e muitos eventos são promovidos; todos com baixa projeção, se comparados a outros eventos de música no país. Não há nenhum tipo de concurso, de liga ou qualquer premiação. Tomando como referência os esportes amadores, essa conjuntura é embaraçosa, pois diversas categorias esportivas das mais incomuns no país possuem uma estrutura de reconhecimento melhor que a do canto coral, premiando de alguma maneira grupos e pessoas que se destacam.
E esse é apenas um dos exemplos de que o problema do canto coral no Brasil não está na estrutura amadora, mas na postura amadora de seus agentes. Abaixo trago algumas conjunturas que reforçam esta ideia:

Partituras

Uma das relações mais amadoras que os corais do Brasil possuem é com o produto que utiliza durante grande parte do ensaio. O mapa da música: a partitura.
A produção mundial de partituras para canto coral é enorme. Além do repertório tradicional, a produção de arranjos de música atual é constante e ocorre em muitos países diferentes de maneira diversa. Existe até uma editora focada neste tipo de publicação chamada earthsongs, que dispõe composições autorais e arranjos de músicas de diversas partes do mundo para canto coral.
Tanto nos EUA como na Europa, as editoras de música são bem estruturadas e disponibilizam muito material físico e online a preços acessíveis. A partitura de um arranjo coral, nos EUA,  com mais ou menos doze páginas não passa de três dólares, custando algo próximo a uma fotocópia e direcionando todos os direitos aos compositores, arranjadores e editores.
Tanto nos EUA como na Europa, as escolas de música publicam muito material, seja por conta própria, seja em parceria com editoras, tornando o negócio rentável e produtivo, estimulando os compositores e arranjadores a criar produtos, pois receberão por isso.
No Brasil, esta produção está muito mais voltada aos profissionais da área, como regentes e professores e, mesmo assim, é diminuta. Talvez um dos maiores erros das editoras brasileiras tenha sido a excessiva margem de lucro. Decerto, não exatamente a margem de lucro, mas as engessadas e ultrapassadas leis de direito autoral que dificultam a produção de materiais. Ou a soma dos dois fatores. Acontece que, até hoje, neste seguimento, tudo é muito caro e, em muitos casos, a xerox sai bem mais barata que a partitura original. E ninguém sai ganhando com isso, nem os produtores, que deixam de receber os direitos, nem o cantor que, além de ficar com um material de baixa qualidade, já que é fotocopiado, ainda corre o risco de ostentar a alcunha de criminoso.
No Brasil, praticamente não existe publicação de arranjos em partituras avulsas por editoras. Normalmente, são publicadas coletâneas de arranjos no formato brochura, péssimo para ler e tocar no instrumento, pois não ficam com as páginas abertas, e que custam bem mais caro. Para ter acesso a um arranjo específico, precisamos comprar vários outros que estão na mesma publicação, mas que não gostaríamos de usar naquele momento. Não tenho problema com isso, já que, quanto mais arranjos tiver, melhor e, como atuo como regente coral, posso não usar numa primeira oportunidade, mas sim em uma situação oportuna. No entanto, isso encarece o produto e, consequentemente, diminui o acesso ao mesmo.
Como sempre, publica-se pensando no regente. E é justamente aí que se situa o erro do mercado: o foco não deve ser no regente, pois ele não é o único consumidor, mas no CANTOR. (não canso de falar isso!). Para cada coral há apenas um regente, mas, pelo menos, quinze cantores, e estou tomando uma média de quantidade de cantores bem arbitrária, pois há grupos com muito mais, apenas para fazer entender, de uma vez por todas, porque há muito material coral encalhado. Encalha porque é inútil para o principal consumidor!
Uma xerox, além de mais barata, é mais leve para segurar durante os ensaios e concertos. Tornando dupla a conveniência do uso da fotocópia. O posicionamento dos produtores de materiais para coro no Brasil desaquece o mercado e torna a experiência com o material menos valiosa, o que, consequentemente, faz com que o cliente não veja valor no que manuseia.
A fotocópia é barata demais. Inconscientemente, o usuário atribui ao conteúdo as mesmas características. A experiência com o material editado profissionalmente, mesmo que em edição digital, é diferente. Pagar justamente faz com que o consumidor valorize. Não pagar ou pagar caro demais inverte a relação. Das duas formas, o consumidor não vê valor no produto. Na primeira, por não custar nada, na segunda, por não valer o preço.
A banalização do compartilhamento de materiais se tornou um câncer no mercado musical brasileiro. Sem querer, a internet potencializou essa realidade, pois, antes, custava a pechincha da fotocópia, hoje, é de graça mesmo. E, atualmente, os profissionais do ramo compartilham das duas formas de maneira totalmente natural, sem nenhum respeito pelos reais criadores, que não recebem nada por isso. Quando me refiro a criadores, incluo compositores, arranjadores, editores e muitos outros profissionais que se debruçaram na produção do material.
Diferente do que vem acontecendo no mercado fonográfico, não existe nenhum  mecanismo de troca de partituras por propaganda. Resignados, muitos compositores e arranjadores se renderam a esta realidade e disponibilizam suas criações gratuitamente em seus espaços virtuais para que, de alguma forma, controlem o fluxo de uso de seus materiais e garantam algum reconhecimento por isso.

Produção fonográfica

Embora tenham, em seus corpos, muitos cantores amadores, os principais coros do mundo estão sempre produzindo tanto concertos, como gravações. As plataformas de streaming de música (spotify, deezer, apple music, etc) estão lotadas de gravações de corais estadunidenses e europeus de alta qualidade.
Até encontramos alguma produção brasileira nas plataformas, principalmente ligada ao gênero gospel. Mas os grupos mais notáveis possuem dificuldade em lançar discos e, quando lançam, muitas vezes não publicam nas plataformas de streaming de música, nem sequer fazem um hotsite divulgando a produção. Em qualquer camada de produção, seja profissional, seja amadora, as gravações não saem do próprio nicho onde foram concebidas. Isso aliena ainda mais o público, pois nem na internet os grupos corais de renome nacional aparecem como deveriam.
Alguns cantores profissionais nem sabem exatamente o que é a postura profissional. Muitos integram sindicatos que restringem a gravação de CD's. Isso é o maior tiro no pé que podem dar diante de um mercado que cada vez mais exige produtos e interação com os meios digitais. Não posso imaginar modelo mais falido do que esse. Além disso, a sensibilidade ao público é nula. Não é incomum que, se consultar o público em geral, nesses espaços de discussões,  sobre a execução de um repertório, não obterá apelo algum. Como esperar reconhecimento social diante de tal postura?

Repertório

Quando o assunto é repertório, a postura individualista pode trazer muita dificuldade para um grupo. Antes de mais nada, quero deixar claro que parto do princípio de que o regente competente sempre trará um repertório que favoreça o crescimento e atenda às demandas do grupo.
Nesse sentido, não há postura mais amadora para um cantor do que a negativa de um repertório proposto. Além de limitar o crescimento artístico ao desfalcar o grupo, torna a preparação do repertório mais difícil. É impossível agradar a todos os cantores e, nem sempre iremos cantar o que mais gostamos. Nessas situações, precisamos sair um pouco de nosso próprio mundo e fazer o exercício da empatia. Observar que, embora não goste de determinado repertório, outros cantores podem estar muito motivados em fazer. Nestes casos, se faz necessário se colocar na posição do outro. Pense, se o outro toma a mesma atitude em situação inversa, como se sentiria? Se todos resolverem cantar apenas o que gostam, jamais um coro ficará coeso, pois sempre haverá desfalques. As pessoas são diferentes, cantar em coro é um exercício da cooperação e do respeito à diversidade.
Igualmente, é necessário haver uma sensibilidade com o público diante do repertório a ser executado. O público não tem obrigação de conhecer todos os repertórios, e não existe um repertório mais relevante que o outro. Existe repertório que vende mais que o outro. E, se ele vende, significa que tem maior alcance e relevância no mercado.
Não há nenhuma sensibilidade de muitas instituições e regentes diante do público que consome música no Brasil. Não estou dizendo aqui que devemos nos render ao mercado e sair cantando um monte de porcaria por aí. E sim que é necessário criar um vínculo a partir do repertório comum tanto ao ouvinte quanto ao coral. A formação coral é versátil e atende a diversos gêneros musicais. Não é preciso fechar em um só.
Tem grupos que fazem repertórios em língua estrangeira e sequer se preocupam em levar a tradução ao público. Sequer se preocupam em posicioná-los diante do que estão contemplando. Como esperar alguma identificação se o público não está nem entendendo do que se trata?
Na verdade, os agrupamentos não fazem isso de propósito, fazem porque não possuem recursos para imprimir mais uma folha para cada programa de concerto, para pagar um projetor que passe as legendas durante a execução da obra, uma pessoa que opere esse projetor durante a récita. Toda essa estrutura demanda mais pessoal e, consequentemente, dispende mais recursos. Vale a pena? É necessário observar se o público que consome está disposto a pagar por isso. Caso contrário, só existe um motivo para fazer: satisfazer o próprio ego.
A postura amadora também está na produção de um repertório que não tem apelo. Não adianta levar para um teatro de 700 lugares algo que apenas 50 pessoas estarão dispostas a ver. Estimativas de público são necessárias na hora de escolher um repertório. Se não vale a pena, não faça. A não ser que o objetivo seja satisfazer egos.

Divulgação

Na maioria das vezes, o problema não é o repertório, mas a divulgação do evento. O coral pode até ter uma assessoria de imprensa, um reconhecimento amplo, mas seu melhor divulgador ainda são os seus integrantes. Hoje em dia, com as redes sociais, cada vez mais os cantores se tornam um importante agente na divulgação da atividade coral.
Vejo que muitos cantores não se engajam nesta parte. Simplesmente não se interessam. É estranho, mas, normalmente, os que pouco divulgam são os mesmos que reclamam de não ter público.
Ultimamente, tenho visto muitos corais lotarem casas de espetáculo, lograrem campanhas de crowdfunding e só consigo atribuir isso ao engajamento de seus cantores. 
Observe o quanto os grandes eventos de música investem em divulgação. O Rock in Rio é divulgado o ano inteiro. O carnaval, idem. Antes de acabar o evento, já estão divulgando o próximo. Se seu grupo está divulgando uma semana antes do evento, o problema não está no repertório, mas na postura amadora de divulgação.

Regentes sem formação

Antes de mais nada, quando me refiro a regentes sem formação, não estou me referindo àqueles que não possuem bacharelado em regência, mas àqueles que não tiveram a devida preparação para a função. Em muitos grupos, um professor licenciado faria um trabalho mais eficiente que um bacharel em regência. E também há pós graduações em regência coral, painéis de regência coral, seminários de regência coral, cursos técnicos e profissionalizantes, e muitas outras maneiras de aprender a lidar com a atividade. Mesmo assim, ainda é uma realidade pessoas sem nenhuma formação conduzindo corais. Eu só consigo enxergar dois motivos para isso acontecer:
1. Situação menos comum: A pessoa é cara de pau e quer tirar onda de maestro.
2. Situação comum: Os cantores, ou instituições, não querem pagar um profissional e chamam alguém, que entende um pouco do assunto, para realizar o trabalho.
Ambas as situações reforçam uma postura amadora. A primeira, porque determinada instituição, ou grupo de cantores, não analisaram o currículo antes de contratar um picareta metido a regente, a segunda, porque não conseguem perceber que, se não valorizam o líder, como esperam que seus anseios musicais sejam valorizados?
É triste, mas a Europa Cantat revela que, na Europa, embora a maioria dos coros remunerem os regentes, há um número expressivo de regentes que não são remunerados pelo trabalho, revelando que essa situação não é apenas brasileira.

Especialização

Quem deseja crescer em sua atividade investe sempre em treinamento. Tanto regentes, como cantores, precisam ser conscientes de que o mundo está em eterna transformação. Novas maneiras de fazer música surgem constantemente e é importante estar antenado às novas tendências. Resolver as limitações é uma necessidade aos que atuam em coros. Se sua limitação é o solfejo, a postura correta é sanar esta dificuldade, se é a técnica vocal, a postura ideal é trabalhar a voz. Se o regente não sabe como atender à necessidade do cantor, buscar formas de melhorar sua interação deve ser um objetivo.
O ambiente musical está cada vez mais especializado e competitivo, ações limitantes apenas cingem o mercado e o deixam cada vez mais amador. Isso retira a relevância econômica de todo o seguimento.
Muita gente reclama que o país não valoriza o canto coral. Pense bem se você, como cantor ou regente, a valoriza. Veja se sua postura é amadora ou profissional.

Arranjadores: Vendam suas partituras.
Regentes: Cobrem pelos seus serviços.
Cantores: Tenham postura profissional, mesmo sendo amadores.
Todos: Pensem no público quando escolher o repertório e adotem postura ativa ao divulgá-lo.
O reconhecimento começa na atitude de cada um. 

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