Por que é impossível escolher o repertório do coral democraticamente?

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Para a primeira postagem do ano de 2019 resolvi falar de um tema polêmico que é muito tratado no início do trabalho coral: o repertório.

Gostos

Todo o início de trabalho coral é marcado pela proposta de um repertório, e isso passa pelo crivo do maestro. É nesse período que se iniciam as divergências, pois, quanto ao gosto, é impossível que haja concordância geral. Há pessoas que amam jiló. Eu detesto jiló. Como concordar nesse diálogo? Impossível.
Quando se trata de canto coral, a escolha do repertório jamais deve possuir juízo de valor. Não existe música melhor que a outra no espectro dos gostos. As pessoas, por diversos motivos, assim como rejeitam jiló, rejeitarão determinados tipos de música. Por isso, nunca haverá uma concordância completa quanto ao repertório proposto. Inclusive, dificilmente trabalho com a expectativa de 100% de aprovação, embora adoraria que tivesse. É claro que a esperança de mudar a opinião de muitos cantores quanto a determinados repertórios sempre existe.
Nunca deixo de provar jiló, afinal, pode ser que alguma hora, como muitos gostam, eu também goste, da mesma forma que passei a gostar de chá mate, couve flor, brócolis americano, café, bacalhau e outras coisas que não apreciava outrora.

Metamorfoses

O que determina as mudanças de gosto é o contato com diversas experiências associadas ao tempo de amadurecimento pessoal envolvendo questões sociais e mudanças de hábitos. Segundo Rodrigo Ortega, em artigo publicado na revista superinteressante, crianças preferem o sabor doce pela proximidade ao do leite materno. Com o tempo, o amargo, inverso do doce, é melhor aceito.
Com música não é diferente. Estar aberto a novas experiências é importante para aquele que deseja aprender mais. No início,  aceitamos melhor o que nos é familiar. Conforme amadurecemos, nossos gostos ficam mais sofisticados, mais seletivos e, por incrível que pareça, mais diversos. Aquele que se preocupa em alargar a experiência musical, normalmente, possui em seu acervo um repertório que engloba mais gêneros que o leigo. Por isso, acredito que, para evoluirmos, é necessário estar em constante mutação. Conhecendo novos repertórios e revendo antigos. Até aqueles que não gostávamos tanto antes, mas que no presente se mostram incrivelmente diferentes e saborosos, como aquela comida que rejeitávamos, mas hoje amamos. Seguir um dos conselhos de Raúl Seixas é sabedoria quando se trata de crescimento musical: permita-se ser uma "metamorfose ambulante".

Objetivos

Nem sempre o grupo canta o repertório que gosta. Às vezes, canta o repertório que precisa. Muitos repertórios são desprezados, pois não possuem o apelo que alguns grupos desejam. Há grupos que querem ter grandes desafios, outros querem cantar em diversos idiomas, outros querem cantar apenas músicas animadas, músicas conhecidas. Existem muitos desejos dentro de um ser humano. Dentro de um coral, onde há vários seres humanos, ainda mais desejos.
Por isso, na escolha do repertório, procuro observar as necessidades para que o conjunto cresça musicalmente; em seguida, traço um perfil do grupo, para que as opções não fiquem distantes dos desejos dos integrantes; daí, escolho o repertório.
Nenhum arranjo ou obra é escolhida de maneira aleatória, sempre há vários objetivos agregados. Aumento da extensão vocal, ritmos mais complexos, abertura de vozes para harmonias mais rebuscadas, diversão ao cantar, beleza da música e texto estão entre os muitos aspectos que avalio antes de escolher o repertório.
Ter um objetivo em mente é sempre importante. Respeitar os limites do coral é necessário. Procurar um meio termo entre o repertório adequado e os desejos do grupo um desafio. Sempre procuro pensar nas situações que aprendi com o maestro Carlos Alberto Figueiredo:
a) o regente quer, mas o coro não quer.
b) o coro quer, mas o regente não quer.
c) o regente e o coro querem.
d) o regente e o coro não querem.
e) o regente pode, mas o coro não pode.
f) o coro pode, mas o regente não pode.
g) o regente e o coro podem.
h) o regente e o coro não podem.
Os quesitos descritos na cor vermelha impossibilitam o trabalho, os descritos em azul são os ideais. Se não houver concordância entre coro e regente, pode acreditar, o repertório não vai acontecer e, se acontecer, não conseguirá explorar todo o potencial que o grupo oferece.

Perfil de grupo

Atualmente, a internet e a inclusão oferecida pelos smartphones possibilitaram uma mudança admirável nas ferramentas de análise de perfil de coro, já que todas as gerações usam internet e possuem contas em redes sociais.
O Facebook, por exemplo, pode mostrar muito a respeito da preferência musical dos cantores. Na própria página pessoal de cada um há campos de interesses musicais. Cantores de coro, por gostarem de música, naturalmente preenchem esses campos, deixando uma boa pista para o regente descobrir seus interesses. O Linkedin, por sua vez, mostra se o cantor possui alguma experiência musical profissional. O Spotify, na versão web, mostra o que os amigos estão ouvindo naquele exato momento. Todas as redes sociais, em algum aspecto, deixam alguma informação relevante sobre os interesses musicais de cada cantor. Basta dar uma olhada nos perfis.
Até o ano passado, eu fazia uma pesquisa informal utilizando as redes sociais, conversas pessoais e abrindo fóruns de discussão nos ensaios para traçar os gostos dos corais que rejo. Este ano, pela primeira vez, resolvi fazer uma pesquisa de pedidos de repertórios por música e gênero musical usando formulários online. O resultado foi muito interessante. Fiquei feliz, pois percebi que meu faro para perfis de coro estava apurado e a pesquisa apenas confirmou muito do que eu já sabia, reafirmando que as redes sociais são ferramentas excelentes para análise de perfil.
Mas, e se eu estivesse errado?
Correria o risco de cair numa situação ruim. Observando as situações colocadas por Carlos Alberto Figueiredo, provavelmente teria muita dificuldade durante o período de ensaios, e teria de trabalhar muito bem o convencimento. Consequentemente, deveria possibilitar a melhor experiência possível e, ainda assim, correria o risco de não obter a aprovação do repertório. Um cantor satisfeito tem mais boa vontade de realizar propostas. Por isso, acertar no repertório pode ser fundamental para o sucesso do trabalho coral. As pesquisas ajudam muito na hora de fazer escolhas e a pesquisa direta, por formulário, deu-me ainda mais segurança.

Impedimentos

Conforme exposto acima, é impossível atender a todos os cantores individualmente, por isso, a escolha do repertório normalmente é generalista: atende aos que concordam em maioria na pesquisa de perfil. Normalmente, de alguma forma, tento atender às minorias, mas confesso que é muito difícil.
Traçar o perfil de um grupo funciona bem, entretanto, assumir uma escolha democrática de repertório, na maioria dos casos, é impossível:
O primeiro motivo é que as escolhas envolvem questões totalmente musicais. Não basta querer fazer, é necessário que o grupo e o regente sejam capazes de fazer.
Nunca esqueço de um professor de orquestração que não ensinava os alunos a escrever para harpa. O motivo pelo qual ele não ensinava era porque não havia muitas harpas na cidade e isso impossibilitaria a composição do aluno de ser tocada. Não concordo com ele, mas é uma visão interessante, que determina o motivo pelo qual não vale a pena assumir certas empreitadas. Escrever para harpa é muito difícil e aprender para não ter a música tocada pode ser uma perda de tempo. Mal comparando, é como se houvesse necessidade de saber escrever para alaúde, sacabuxa, flauta pan e outros instrumentos que não estão tão presentes no cotidiano musical. São lindos, mas são poucos os que sabem tocar e poucos os instrumentos disponíveis no mercado. Esse assunto pode ir mais longe, mas só quero ilustrar aqui que certas empreitadas não valem a pena, quando o coro ainda não tem capacidade de encará-las.
O segundo motivo é que, para preparar os materiais, é preciso dispor de tempo, especialmente quando se trata de músicas arranjadas, que precisam se encaixar perfeitamente no perfil do grupo e nas condições que oferecem para empreender. Às vezes, existe o arranjo de uma música, mas ele pode ser muito difícil para determinado grupo em determinado momento ou, até mesmo, ter sido concebido para uma formação que o grupo não comporta: como nos casos dos grupos que cantam a três vozes e desejam fazer músicas que foram escritas para quatro. Há uma impossibilidade de vozes aí. Faltaria gente. Alguns regentes gostam de fazer adaptações. Eu, particularmente, prefiro escolher as versões originais. Caso o arranjo original não me sirva, me debruço num novo que atenda às necessidades.

Desafios

Lançar mão de desafios é importante para o crescimento do grupo e pode proporcionar ótimas experiências, mas é importante avaliar se o grupo lida bem com essas situações.
Alguns grupos são avessos a propostas laboriosas e, quando sugeridas, por melhor que seja a tática de convencimento do regente, nada acontece. A frustração por não conseguir realizar um desafio pode ser muito danosa e tornar o grupo cada vez mais inerte, pois pode partir do princípio de que não é capaz. É necessário ter alguma segurança em relação a propor desafios, e bom senso. Também é importante que o grupo leve o fracasso como aprendizado para fazer melhor em outra oportunidade. Fracassos não podem ser motivo de desistência, mas combustível para o aprimoramento.

Alienação

Um dos maiores problemas atuais da arte é a alienação. A falta de contato com os processos de produção cultural, e os meios tecnológicos instantâneos de criação de música, dão a impressão de que tudo é imediato e simples de fazer. No caso de materiais corais, na verdade, tudo demanda muito trabalho, pois são muito específicos e muita gente não sabe como fazê-los, inclusive profissionais da área. Entre ensaiar um coral e criar meios que possibilitem o estudo autônomo do grupo há uma lacuna imensa.
Conheço muito regente que só consegue trabalhar com grupos prontos e/ou pagando cantores profissionais para integrar cada naipe do coro, garantindo uma apresentação segura. Eu, pessoalmente, não compartilho desses valores. Acredito que o correto é o coro trabalhar com o que tem e criar, no grupo, a consciência de que é preciso trabalhar para alcançar os objetivos. Acredito que o fracasso é um dos maiores mestres da vida. Penso que, trabalhando duro e falhando algumas vezes, especialmente nos momentos decisivos, o cantor se sentirá mais recompensado pelo trabalho bem feito, pois sabe o quanto teve que se dedicar para realizá-lo e, cada vez mais, se sente capaz de fazer ainda melhor.
Obviamente, o mercado não está interessado em criar ferramentas fáceis de estudo coral, embora existam algumas na internet. Tive a oportunidade de avaliá-las. As de boa qualidade são pagas e possuem pouco repertório, as que possuem muito repertório, considero de qualidade... duvidosa.
Além disso, há músicas que não possuem arranjos prontos, o que demanda do regente a expertise de um compositor: arranjar músicas. Eu faço alguns arranjos, mas, assim como qualquer processo artístico, demanda tempo, técnica e, principalmente, muita criatividade.
Sempre procuro oferecer cópias com a melhor definição possível. Se não houver uma boa edição da partitura, reedito inteiramente. Se houver erros, procuro consertá-los antes de distribuir ao coro. Tudo isso demanda um trabalho de revisão que necessita de tempo. Além das partituras em alta resolução, procuro oferecer os áudios de estudo com a maior quantidade de elementos possíveis, o que demanda muitas horas na frente do computador sequenciando faixas, estudando timbres e buscando novas soluções em música eletrônica para estudo. Por isso, normalmente, uso o tempo dos recessos para confeccionar materiais e, se for o caso, escrever um novo arranjo.

Escolha por votos

O leitor pode estar pensando em alguma maneira democrática para escolha de repertório como a votação. Mas, para isso, seria necessário uma reunião para definir quais músicas seriam votadas; em seguida, uma pesquisa de arranjos adequados para o grupo, considerando todos os entraves vistos acima e, por último, a elaboração do material de estudo, que precisa ser de qualidade para não afetar o andamento dos ensaios, o que demanda muito tempo e também será produzido tardiamente, por conta do tempo de votação e do período de votação, que acabará sendo durante o período de ensaios, para assegurar a presença de todos os integrantes.
Tendo em vista que, para determinar os critérios de votação, o grupo precisa de uma ou mais reuniões, considero que ainda não é possível ser totalmente democrático. Não podemos sacrificar tanto tempo de ensaio para definir repertório. Um ensaio coral deve ser 90% canto. Transformar o ensaio num plenário afetará o objetivo principal da atividade, que é cantar. Nos casos de grupos que cantam majoritariamente em uníssono, pode até funcionar, mas quando se trata de grupos que cantam arranjos elaborados, é um tiro no pé.
Destarte, para a segurança do objetivo final, sou autocrata: abro mão da democracia burocrática do voto e priorizo a prática imediata disponibilizando o repertório escolhido e o material todo pronto, antes do início das atividades, garantindo que o grupo esteja com tudo em mãos já no primeiro ensaio.

O regente é soberano

Muitas vezes, o sucesso do maestro está condicionado à habilidade de conseguir escolher o repertório exato para o grupo correto e conseguir convencer, aqueles que não estão tão afim, a abraçar a proposta e fazê-la. No final das contas, não tem jeito, por mais que inventemos maneiras democráticas de definir o repertório, no final, o regente terá que dar a palavra final, pois a escolha é puramente técnica e, normalmente, ele é o único que tem todos os elementos para averiguar se é adequada.
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