Resenha Coral - Mendelssohn Psalms - Helmuth Rilling & Gächinger Kantorei Stuttgart

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Os salmos de Mendelssohn são uma obra prima da música ocidental. São belíssimos, de expressão, autenticidade e sensibilidade ímpar. Reflexo de um compositor culto e comprometido com a música, cultura e memória. A resenha de hoje é sobre o disco Psalms gravado pelo Gächinger Kantorei e Bach-Collegium Stuttgard sob a regência de Helmuth Rilling.

Mendelssohn

Mendelssohn foi um dos compositores mais importantes da música ocidental. Não apenas pela sua genialidade perante a construção musical, mas também pelo seu engajamento. É um compositor preocupado com a história e memória da música. Teve ligação direta com o movimento educacional que inventou a escola moderna, sendo professor universitário e editor de música.
Se hoje temos acesso à obra de Bach, devemos muito ao trabalho de Mendelssohn, como um pioneiro na pesquisa em memória musical. Seu trabalho rendeu as primeiras edições críticas sobre a obra do grande mestre alemão. Essa relação não para em Bach, é, na verdade, uma mudança de paradigma, visto que, até o século XIX, a sociedade não se preocupava muito com a memória, valorizava mais o ineditismo das obras. Para ilustrar o absurdo, Schubert, que era apenas 12 anos mais velho, já estava em vias de ser esquecido, e Mendelssohn ressuscitou a obra do compositor no seu trabalho como editor.

Memória, nacionalismo e cosmopolitismo

Essa valorização da memória ocorre em função de um nacionalismo pungente que permeava o pensamento romântico. Se, por um lado, esse nacionalismo valorizava a "raça", como nas obras de Weber e Wagner, por outro, valorizava as raízes da música de cada povo. É nesse mote que Mendelssohn atua, buscando, nos gênios do passado, especialmente do período barroco e clássico, as raízes da música alemã.
É nesse contexto que Bach e Schubert são valorizados. O primeiro, como reflexo da religiosidade protestante alemã, revelada no Expressionismo alemão, o segundo, como valorizador da cultura popular, sendo um dos compositores pioneiros na composição de músicas com temas populares, vide os famosos lieds que até hoje chamam a atenção pela expressividade e virtuosismo no canto e no piano. Bach, por sua vez, é o baluarte da ciência musical moderna. Explorou tudo o que o tonalismo oferece, já no século XVII com maestria, lirismo, virtuosismo e beleza.
Esse cenário influenciou decisivamente a obra de Mendelssohn. Como educador, compôs arranjos de temas populares e folclóricos para coro, como  compositor sacro, inspirou-se na obra de Bach. A técnica de Bach e Schubert foram uma base sólida. A criatividade e genialidade de Mendelssohn, aliada a um cosmopolitismo que autorizava beber de tudo, o tornou um romântico perfeito. Professor universitário, conhecedor também de artes, literatura, línguas e filosofia, tendo trabalhos reconhecidos também nessas áreas, Mendelssohn estava no mesmo círculo de Hegel e Goethe.
Se, por um lado, conhecia os afetos religiosos e filosóficos do povo alemão, por outro, era pedagógico e acadêmico e, ainda, era culto e criativo. O que dizer do acorde inicial do "Sonho de uma noite de verão"? Aquilo é a marca de Mendelssohn na história da música. Uma marca harmônica e orquestral. Um simples arpejo, entretanto tão belo que um dos maiores orquestradores do mundo, Rimsky-Korsakov, aproveitou o efeito na obra Sheherazade. Simples e grandioso. E o que são as cordas de Mendelssohn? Únicas!

Os Salmos

Nos salmos, Mendelssohn revela sua face bachiana. Traz fugas, contrapontos imitativos, coros à capela a 8 vozes, coros a vozes iguais, e melodias que passam pelos solistas, coro e orquestra. Os salmos mostram a grandiosidade de Israel e Mendelssohn traz na orquestra, e no coro, o efeito ideal para demonstrar esse aspecto.
O Salmo 114, que retrata a saída do povo de Israel do Egito, é um bom exemplo a ser visto. Inicia com um coro a oito vozes, com orquestra apenas dobrando as vozes, mostrando a influência barroca. Quando a terra treme, o mar se abre e os montes saltam, a orquestra ganha vida e movimento, as cordas de Mendelssohn surgem em sua beleza e primor. Um tema com influência de Bach surge no coro. São as notas chave do Coral Nº 4 dos Schübler Chorales para órgão - Meiner Seele erhebt den Herren, BWV 648. Nada mais grandioso que citar Bach na própria música, especialmente em um momento tão dramático do velho testamento.
Os contrastes entre vozes, solistas e coro, são um ponto alto nos salmos de Mendelssohn. Percebemos isso no Salmo 42 e no Salmo 115, onde são valorizados os timbres de vozes iguais. É um imenso prazer cantar estes trechos.
O Salmo 100 é o auge da simplicidade grandiosa. Praticamente um hino para quatro vozes à capela. No meio, um octeto de solistas oferecendo graças à benevolência do Senhor. No coro à capela, a grandeza simples do Deus onipotente.

Helmuth Rilling

Helmuth Rilling é um dos maestros mais relevantes de nosso tempo. Foi o primeiro a gravar a obra completa de Bach com instrumentos modernos. São mais de mil peças gravadas em 170 discos. Também é professor acadêmico altamente reconhecido nas principais universidades europeias.
Para fazer música coral de alta qualidade, Rilling fundou o Gächinger Kantorei e, posteriormente, a orquestra Bach-Collegium Stuttgard, formada com o único propósito de acompanhar o coro.
Rilling estudou com Fernando Germani em Roma - Accademia Musicale Chigiana in Siena e, posteriormente, com Leonard Bernstein em Nova Iorque. Possui um Grammy (2001) pela performance do Credo de Penderecki, uma medalha Bach (2004), um Prêmio Stanford (2008), oferecido pela Yale School of Music e um Prêmio Herbert von Karajan (2011).

Gächinger Kantorei

Kantorei é um termo utilizado para designar grupos corais de alta performance. O Gächinger Kantorei ostenta em seu currículo além da obra completa de Bach, obras de compositores de todos os períodos a partir da renascença.
Fundado em 1954, no início, focava mais no repertório de música antiga e moderna, depois, admitiu o repertório romântico. Graças a isso, temos o álbum Psalms de Mendelssohn.
Com a gravação da obra completa de Bach, o grupo ganhou o Grande Prêmio do Disco em 1985. O coro também tem protagonismo em estreias mundiais de obras de peso, como a Messa per Rossine, de Arvo Pärt,  o Réquiem da Reconciliação, de Rihms e a ópera Die beiden Neffen, de Mendelssohn.
O grupo já foi regido por importantes personalidades da música de concerto como Masaaki Suzuki, Krzysztof Penderecki, Ton Koopman e outros.

O álbum

Gravado em 2009 em comemoração aos 100 anos de nascimento de Felix Mendelssohn, Psalms é um marco na gravação de coro e orquestra. Um regente, um coro e uma orquestra com mais de 40 anos de experiência, não poderiam entregar algo ruim. O disco é maravilhoso. Possui os principais salmos de Mendelssohn em alta performance.
Inicia com o "cantai ao senhor um novo canto", para coro à capela e baixo solista. Obra homônima ao famoso moteto de Bach "Singet dem hernn ein neues lied", traz, na polifonia das vozes, a beleza do canto virtuosístico. Segue com os grandiosos Salmo 115 e 114, trazendo o vigor e a beleza de ambos diante da evidência da grandeza de Deus, e termina com o belo Salmo 42. Senti falta apenas do Salmo 100, que poderia ser cantado para fechar o CD com chave de ouro.
As interpretações são impecáveis e, ao mesmo tempo, mostram um Helmuth Rilling muito seguro nas felizes escolhas musicais. Um disco único, escuta necessária para quem ama o canto coral e a música de Mendelssohn.

 

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