Resenha Coral - Calíope - Villa-Lobos - Vozes do Brasil

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Villa-Lobos é um dos maiores compositores (para muitos o maior) da música brasileira. Ouvir sua obra é sentir correr no sangue a brasilidade. É difícil um estrangeiro sentir a mesma emoção ao ouvi-la. Sentir o ritmo pulsante, as temáticas típicas, para um brasileiro, é como se sentir em casa na música de concerto.
Villa-Lobos então é um tesouro de expressão psicológica de textos, dentro da mais acentuada música nacional.
Assim disse Mário de Andrade sobre o compositor no livro Aspectos da Música Brasileira.

Hoje, a resenha é sobre o disco Villa-Lobos da Série Vozes do Brasil do Coro Calíope sob a regência de Júlio Moretzsohn.

Villa-Lobos

Heitor Villa-Lobos é um dos compositores brasileiros mais conhecidos no mundo. Nascido no fim do século XIX, teve a oportunidade de ver uma nação legitimamente brasileira surgir e muitos aspectos da diversidade de ambientes políticos e sociais influenciaram sua obra. O compositor viu um país recém liberto deixar a monarquia para se transformar numa República Oligárquica e depois participou ativamente de uma ditadura nos setores da cultura e da educação durante a Era Vargas.
Personagem central na música da Semana de Arte Moderna (Semana de 22), embora ainda muito influenciado pela música francesa, Villa-Lobos já revelava interesse em obter uma arte musical genuinamente brasileira. Essa proeza é perceptível nos Ciclos das Bachianas e dos Choros, produção considerada magna pelos historiadores e biógrafos do compositor.
Como todo grande compositor, Villa-Lobos, possui protagonismo na produção coral. As próprias Bachianas e Choros possuem coro em algumas formações:  Bachianas nº 9, Choros 3, Choros 10, Choros 14 (partitura perdida). No ciclo de sinfonias, o compositor também faz uso do coro na Floresta do Amazonas, e em muitas outras situações orquestrais nas quais o coro assume função de índios, escravos, trabalhadores, sertanejos e outros personagens do imaginário brasileiro.

Villa-Lobos e a Era Vargas

Além da produção para coro e orquestra, Villa-Lobos foi fundamental na criação de um gênero coral brasileiro. Em um processo complexo, o compositor reinventa a composição e cria uma identidade para o gênero.
Assim como em toda ditadura, o ensino de música durante a Era Vargas foi voltado para o civismo e a disciplina, instigando o patriotismo. Este traço do nacionalista procura unir o povo em prol de um objetivo maior imposto por um líder. Villa-Lobos se identificava com o projeto varguista e assumiu posição de superintendente de música por convite de Anísio Teixeira. Assim, o Canto Orfeônico se tornou prática obrigatória em estabelecimentos de ensino secundário pelo decreto n. 19.941-1931 e, em todos os estabelecimentos escolares, pelo decreto n. 24.794-1934. Cabia a Villa-Lobos organizar as concentrações de pessoas para a realização do canto orfeônico em atos cívicos.
Nesse disco, objeto desta resenha, uma parte da composição voltada para o canto orfeônico está exposta nas músicas Canide Ioune-Sabath, Xangô, As Costureiras, Estrela é Lua Nova, Bazzum, Vira, Remeiro de São Francisco, Jaquibau e Invocação em Defesa da Pátria; todas do livro "Canto Orfeônico", publicado pela editora Irmãos Vitale e adotado oficialmente em todas as instituições que praticavam o Canto Orfeônico. Nessa produção, Villa-Lobos traz personagens importantes da mitologia e do imaginário popular brasileiro para o canto coral. Buscando as sonoridades indígenas, afro-brasileiras e sertanejas, apresenta o Brasil ao mundo, e ao próprio país, pela música. Para tal, inaugura efeitos que foram utilizados a esmo por compositores posteriores ao seu tempo, formando uma escola de como compor música genuinamente brasileira.
No Período Democrático (1946-1964), o canto orfeônico foi perdendo relevância por ser vinculado à ditadura Vargas, em 1961 foi substituído pela disciplina "educação musical" e, em 1971, recebeu o golpe final dado pela ditadura militar que instituiu a polivalência no ensino de artes nas escolas: a chamada "educação artística", cujo professor deveria ser um Leonardo da Vinci e dominar todas as artes, ensinando-as em poucos momentos reservados na grade curricular.
É pena que a obra de Villa-Lobos não seja tão conhecida no Brasil. Acredito que nossa educação deveria fazer maior uso de suas composições e que os momentos de solenidade também deveriam rememorar esta obra.

Calíope

O Calíope é um conjunto profissional voltado para a produção coral de câmara fundado em 1993. Possui amplo reconhecimento no Brasil e no exterior. Em 2002 recebeu o Prêmio Carlos Gomes e sempre que realiza trabalhos recebe críticas especializadas positivas. Representou o Brasil cantando no Chile, integrando a programação oficial do ano do Brasil na França em 2005, na Bolívia, em Portugal, na Espanha. É um grupo com produção única, tanto no repertório Villa-Lobos, como podemos ver nesse disco, como no repertório de música colonial brasileira, com discos aclamados pela crítica.

Júlio Moretzsohn

Júlio Moretzsohn é professor de Regência Coral da UNIRIO. Maestro do Calíope e fundador do Coro Sinfônico do Rio de Janeiro constituído de cantores de formação lírica, que durante muito tempo atuou com a Orquestra Petrobras Sinfônica e a Orquestra Sinfônica Brasileira. Desde 1999, dirige a Orquestra de Vozes Meninos do Rio, um coral de mil crianças da Rede Municipal de Ensino do Rio de Janeiro.

O disco Villa-Lobos - Vozes do Brasil

Este disco gravado pelo Calíope é um primor. Não deve em nada às produções europeias, no sentido da gravação, e é muito superior no sentido musical. O português brasileiro para qualquer coral estrangeiro é um desafio. As nuances de nossa língua e nossa maneira de falar são únicas. Para interpretar Villa-Lobos no repertório vocal é quase que um pré-requisito ser brasileiro, ou entender muito do que é ser brasileiro. E isso, para um estrangeiro, é algo muito difícil de transpassar.
A relevância deste projeto é que poucos são os grupos brasileiros que se dedicam à obra coral de Villa-Lobos, seja pela sua dificuldade, seja pelo seu escopo. Muitos grupos simplesmente não possuem nível musical para cantar e, muitos dos que o possuem, não estão dispostos a fazê-lo. O direcionamento afro adotado na obra ainda encontra muita resistência nas classes mais conservadoras, e muitos se negam a cantar. É valorosa a contribuição do Calíope para a cultura nacional mostrando que essa obra tem valor artístico único, e que representa o Brasil.
As Bachianas n. 9, a Fuga IV, José. Obras de dificuldade extrema executadas com primor. Feitas nos mínimos detalhes, trazem uma faceta da produção artística brasileira de despertar inveja em qualquer um. Muitos bravos ao Calíope e a Júlio Moretzsohn pela produção.
Para mais informações, acesse o site do projeto:
 
 É um privilégio viver no Rio de Janeiro e conviver com grupos como o Calíope. Lidar diretamente com os cantores do coro nos ambientes de trabalho e de estudo, conhecer o maestro Júlio Moretzsohn pessoalmente, tudo isso cria uma identificação imensa com o disco Villa-Lobos e a produção deste coro.
Aproveito para agradecer ao Júlio pela imensa colaboração em minha formação, especialmente organizando o Brasil-Alemanha, situação da qual participei várias vezes (perdi as contas) e que trouxe grande contribuição à minha formação.

No mês de outubro, o Coro de Câmara da Associação de Canto Coral fará uma programação totalmente voltada à produção coral de Villa-Lobos. As inscrições estão abertas para todos os naipes. Se desejar participar, entre em contato.
Saiba mais sobre o coro de câmara:
Corais que rejo: Coro de Câmara - Um coro de concerto formado nas bases da Associação de Canto Coral

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