Por que escolhi não aparecer regendo nos vídeos de coros on-line

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A explicação é simples:

O único motivo pelo qual um regente resolve aparecer nos vídeos bancando o “boneco do posto” é para marcar território. Observe ainda que, normalmente, esses regentes não produzem o vídeo. Como não participam ativamente da produção final do som, que ficou a cargo de algum profissional que domina os softwares de edição, sentem ainda mais a necessidade de afirmar sua liderança. Em verdade, mesmo essa posição demonstra apenas o medo de perder o posto. E, a julgar pela técnica pouco apurada de muitos desses regentes somada ao pouco conhecimento tecnológico para realizar a função, a posição de liderança encontra-se, de fato, em grande risco. Tenho visto vídeos de pessoas que não passariam nem pelas matérias de introdução à regência de qualquer graduação em música que se preze. Ao se expor dessa maneira, esses regentes mal sabem o quanto estão denegrindo o próprio trabalho.

O gesto precisa ser construído

Existem muitas técnicas de gestual de regência. Cada uma com um pressuposto. Algumas são, de fato, puramente performáticas: um teatro gestual cujo único objetivo é aparecer mais que a música. Deixando essas escolas de lado, todo o gestual é ferramenta acessória com o objetivo de auxiliar o músico a executar, conforme o acordo interpretativo proposto pelo maestro ao grupo. Portanto, de toda a forma, o gesto é construído em conjunto. Claro que a técnica de regência pode ser bem apurada e inspirar o cantor, sem necessidade de muita explicação. Mas esses casos são excepcionais. Do contrário, não seriam necessárias master classes onde diretores demonstram seus diversos pontos de vista para a escolha de cada gestual. Bastava vídeos com essas pessoas executando os gestos e a observação atenta de cada aprendiz.
O delay que a internet oferece é o exterminador do gesto. Esse atraso dificulta a relação gestual, e não há nenhum controle sobre como o gesto instigará cada cantor de modo a que haja um acordo sobre seu sentido sonoro. Se não há sincronia, boa parte da função gestual se perde, e a construção do significado de cada movimento se torna truncado demais, e difícil de executar. No fim, contar os tempos, usar o metrônomo, ou mesmo observar o desenho das ondas sonoras numa gravação, se tornam mais eficientes que muitos gestos padrões como marcação de tempo e modelos de compasso. Um acordo que tive com alguns profissionais é que o gestual necessário na internet é, na maior parte das vezes, fraseológico, mostrando a direção da linha melódica e das dinâmicas de uma música. É claro que vídeos em sincronia com áudios de estudos também são bem vindos, mas sempre lembrando que precisam ter seu sentido construído.

Lugar de regente é no fosso

Mesmo que o gesto seja algo funcional e ajude os músicos e cantores a executar as obras com eficiência no ambiente virtual, jamais o regente deve ter algum protagonismo no palco. Embora receba muito reconhecimento pelo trabalho, durante a empreitada, quem executou os sons foram os músicos. O regente fica sempre de costas para o público, e sua função é auxiliar os músicos a serem prestigiados. Quanto mais discreto for, menos retira a atenção da música. O gesto não traz nenhuma contribuição sonora no sentido físico, apenas incita os músicos a tocar. Muito menos artística quando se trata de música. Como música não é arte cênica, por que a necessidade de mostrá-lo? Se o som é bonito ou feio, por mais que o gesto inspire, quem faz o som é o músico, não o maestro. No final, a única coisa que o gestual dos regentes faz, nesses vídeos on-line, é inflar o ego daqueles que o utilizam. Há quem diga que o gesto sempre apareceu em vídeos, mas esse gesto foi construído em função da música, não do vídeo. O que vemos nestes vídeos de coros on-line é uma distorção bizarra da função do gesto.

O gesto como objeto de status

O gesto que, em muitas escolas de regência, era primordial, neste momento, se tornou um acessório quase dispensável para aqueles que sabem usar. Para aqueles que nunca souberam, se tornou elemento de poder.
Para muitos, balançar os braços na frente de um grupo representa liderança. Como poucos priorizam a construção do significado do gesto, a experiência de olhar para o maestro, e inspirar-se a fazer um som, se tornou rasa e, muitas vezes, inexistente. Em muitos casos, sequer o vídeo com o maestro regendo serviu de base para a execução dos cantores, sendo feito com o único propósito narcísico de fazer o maestro aparecer. Se o regente não sabe usar o gesto, como levará sentido aos executores? Na verdade, o fato dos regentes terem a coragem de se colocar num vídeo com movimentos inúteis só mostra o quanto, cada vez mais, o gesto está sendo desvalorizado nos corais, sendo um elemento de status, e não a serviço da execução musical. No final, os que mais desvalorizam o gesto são aqueles que se colocam em tal posição.

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Comentários

  1. Muito bem colocado maestro.

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  2. Muito bom o texto, porém discordo um pouco da abordagem de considerar que o regente está "marcando território". Apesar de eu estar regendo no primeiro vídeo que produzi com um dos coros wue Trabalho, optei por tocar piano no segundo, mas por opção mesmo de formato. No caso da presença do regente, vejo mais no sentido de tentar "imitar" uma apresentação presencial, onde geralmente existe a presença do regente. E você vendo o regente conduzindo o coro, mesmo que mais simbolicamente, configura o trabalho de um coro. Não sei. Foi isso que me veio à mente no primeiro momento e é o que ainda vejo nos vídeos com regentes

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    1. Boas colocações Bianca. Obrigado!
      Mas uma das questões levantadas é essa:
      Até que ponto o gestual deixa de estar a serviço da execução musical e passa a ser arte cênica? Essa polêmica não é própria dos vídeos online, sempre houve, pois muitas escolas de regência são encaradas como cena. A questão é: Será que o gestual agora será apenas uma expressão cênica? Ou conseguiremos encontrar uma função musical dele no ambiente online?

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  3. Muitas reflexões podem ser feitas a partir dessas considerações.

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  4. Olá, Rafael. Li seu texto com atenção. Entendo o que vc quer dizer e concordo com boa parte dos seus argumentos, mas também vejo que há muitas questões complexas envolvidas nessa nova realidade, razão pela qual, tentar entendê-las da forma mais ampla e empática possível, surge como algo que devemos perseguir. No meu caso, especificamente, fiz 3 vídeos nesse período. Nos 3 decidi não reger, optando por aparecer cantando, exatamente por uma convicção muito próxima àquilo que você traz à discussão em seu texto. Entretanto, em um dos coros - aquele que utilizo também como laboratório de prática de regência, coloquei meus Alunos e Alunas de regência coral do Villa dirigindo, justamente porque achei que seria uma ótima oportunidade para que eles trabalhassem seus gestos e, da mesma forma, tivessem um espaço para se apresentarem. Entende como a partir dessa ótica o assunto assume outras perspectivas? Como foi dito acima por um dos colegas, não sabemos a realidade das pessoas e o que as levou a tomar a decisão de reger. Enfim, só decidi me manifestar com o intuito de contribuir um pouco com a discussão e trazer elementos que no seu texto não foram abordados. Entendo também o quanto o tema é polêmico e passível de análise e crítica, ressalvando, entretanto, que relativizá-lo construtivamentepode vir a produzir reflexões importantes acerca da nossa prática em si e da incerteza no futuro que tanto nos preocupa nesses tempos tristes e difíceis. Parabéns pelo material desenvolvido! Suas colocações estão servindo pra gente se falar e isso, por si só, já é excelente. Abraços.

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    1. Muito bom!
      É justamente esse o intuito do blog. Muitos acham que quero dispor da razão, mas a ideia é estabelecer o diálogo. Achei essa abordagem ótima, pois coloca-os a prova e deixa clara todas as questões de gestual de regência preparando para um diálogo embasado. Maravilha!
      O tema é pertinente e precisava ser dialogado de forma construtiva. Escrevi um texto apelativo para isso. Que bom que surtiu o efeito.
      Muito obrigado!!

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  5. A questão é que hj em dia todos nós passamos a ser muito mais diretores musicais do que simplesmente "regentes/maestros" como somos vistos não só pelo público que nos acompanha mas também por nossos próprios coralistas. Mudanças de paradigmas!

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    1. Sim. Muita gente acha que ser maestro é movimentar os braços na frente de um grupo, mas fazer direção é muito mais do que isso. O fato de haver alguém na frente fazendo gestos ou não é indiferente. O ambiente online está evidenciando que ser regente é muito mais do que isso.
      Muito obrigado!

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