Caldeirão de Vozes e a Crise de Públicos da TV Globo
Rejeição ao coral no Caldeirão revela mudanças no público da Globo
No fim de junho, uma matéria da Folha de S.Paulo repercutiu fortemente nas redes sociais: o novo quadro com corais no programa Caldeirão, apresentado por Marcos Mion, foi alvo de piadas e críticas por parte do público conectado. Um dos comentários mais compartilhados dizia que, "se pelo menos eles usassem figurinos e coreografia igual Glee", indicando uma certa frustração com o formato adotado. Mas o que está por trás dessa rejeição? Mais do que uma falha de programação, o episódio evidencia uma crise de públicos vivida atualmente pela TV Globo.
A crise de públicos da Globo não é um problema
Essa crise, no entanto, não é necessariamente ruim. Trata-se de uma consequência natural das transformações sociais em curso, especialmente no que diz respeito ao uso da internet e dos dispositivos digitais. A emissora, como qualquer empresa com recursos e influência, tem se reorganizado para acompanhar essa mudança. Por isso, direciona conteúdos mais sofisticados e segmentados ao Globoplay — seu serviço de streaming —, enquanto a TV aberta passa a ser voltada a um público mais "desconectado": em geral, pessoas idosas ou com pouco acesso às plataformas digitais.
Canto coral na mídia e seus estereótipos
Nesse processo, há um desafio delicado: a formação de uma recepção cultural enviesada. Quando a programação da TV aberta é pensada majoritariamente para públicos com menos repertório, é comum que reforços estéticos simplificados ou estereotipados acabem predominando. No caso específico do canto coral, a associação com "coisa de velho" ou com ambientes religiosos é frequentemente reiterada, empobrecendo a percepção artística dessa prática e dificultando a aproximação de novos públicos.
Sem domínio do tema, Globo expõe questão relevante
É importante frisar: não se trata de culpa dos telespectadores. Trata-se de condições socioeconômicas, repertórios culturais e da forma como a mídia molda, ao longo do tempo, o gosto do público. Ao apostar num quadro de corais para o Caldeirão, a Globo agiu como qualquer pessoa ou instituição que, com boa intenção, busca visibilidade para uma linguagem artística — mas sem conhecimento de causa. A falta de familiaridade com a prática coral e com as dinâmicas do meio resultou num quadro que, embora tenha alcançado grande visibilidade, acabou destoando das expectativas tanto do público comum quanto do público especializado.
Quando a Globo tentou algo como Glee
Curiosamente, não é a primeira vez que a Globo tenta algo do tipo. Houve, nos anos 2011, um quadro com corais cênicos no programa da Xuxa, visivelmente inspirado em Glee. A diferença é que, naquela época, o público-alvo era adolescente — um público que ainda consumia TV aberta e estava alinhado com as tendências culturais internacionais. Hoje, esse mesmo público migrou para o digital, e a TV aberta conversa majoritariamente com um público mais velho, que pouco se identifica com formatos contemporâneos ou referências internacionais.
Canto coral e os padrões da televisão
Essa mudança evidencia como as expressões em voga moldam diretamente a programação televisiva. O que se entende por “moderno” ou “aceitável” na TV resulta da combinação entre os códigos culturais predominantes e os públicos que se busca atingir. Há uma tensão histórica entre o campo erudito e o campo comercial nas mídias brasileiras — tensão que também atravessa a trajetória do canto coral no país. Diversas pesquisas abordam essa temática, revelando disputas especialmente em torno da obtenção de recursos, tanto durante o regime militar, no âmbito da FUNARTE, quanto no período democrático, por meio da Lei Rouanet.
O desafio de valorizar o canto coral
Não à toa, o público rejeita o que foge desses códigos consolidados. Foi assim com Caetano Veloso, duramente criticado na “Marcha contra a Guitarra Elétrica”, e continua sendo assim com qualquer proposta artística que se proponha a tensionar as fronteiras do gosto médio. Esse tipo de resistência cultural não é fortuito — ela é fruto de um processo sistemático de formação de gosto, sustentado por décadas de padrões estéticos naturalizados.
Por isso, mais do que ironizar ou descartar o que aconteceu no Caldeirão, é preciso aproveitar a oportunidade para refletir. A repercussão desse quadro oferece dados valiosos sobre o comportamento do público em relação ao canto coral. Revela onde estão as brechas, os ruídos, as possibilidades. A Globo, mesmo sem expertise no assunto, nos proporcionou um retrato claro das limitações e potencialidades da linguagem coral no imaginário popular brasileiro atual.
Canto coral e seus caminhos na mídia
O desafio agora é nosso: compreender essas dinâmicas com profundidade e desenvolver estratégias mais conscientes para valorizar o canto coral em sua riqueza expressiva, comunicando-se com diferentes públicos sem abrir mão de sua complexidade artística.
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