Não perca tempo com Teoria Musical

Tempo de leitura:

Você estudou aquele livro ou apostila que o seu professor de música lhe indicou. Leu sobre compassos simples, compostos, escalas, acordes, síncopes, quiálteras, e jura que compreendeu tudo. E o melhor: o curso durou apenas um ou dois anos. Empolgado, resolveu colocar-se à prova: pegou a partitura, olhou para ela, e não soube qual som tirar de lá. Sentou no seu instrumento, e também não soube exatamente como fazer os ritmos propostos, as agógicas, não soube como exatamente aquilo soaria, como aqueles acordes combinariam...
Parabéns! Você entrou para o time dos iludidos. Esqueceu que música se canta, ou toca, e acreditou que música se compreende. Triste engano.

Alfabetização Musical

Tente se lembrar da maneira como aprendeu a ler e escrever em sua língua materna - provavelmente o português para o leitor brasileiro. Tente lembrar como a sua professora explicou o que são as letras, a junção das sílabas, as palavras. Ela fez tudo isso sem mostrar como as palavras soam? Agora, imagine se a sua professora ensinasse gramática antes de tudo isso. Será que faria sentido?
Na maior parte das experiências dos videntes (aqueles que vêem) e ouvintes (aqueles que ouvem), a alfabetização ocorre com a relação signo-som. Há sempre uma relação múltipla entre os sentidos, no aprendizado de uma linguagem escrita. Por isso, é muito difícil alfabetizar um deficiente visual ou auditivo. São necessárias técnicas que utilizam o tato, outras formas de trabalhar a relação signo-som, outras visões de mundo. Tudo para, de alguma forma, trazer algum sentido para o aprendiz.
Qualquer proposta de ensino musical que não tenha relação sonora é antimusical por natureza e, qualquer leitura que não extraia o significado musical incutido na partitura, inútil.
De que adianta compreender as relações de subdivisão rítmica se não consegue fazer? Saber que uma colcheia é metade de uma semínima, que uma semicolcheia, por sua vez, é metade de uma colcheia é relativamente simples. Na música, o que realmente importa é o que somos capazes de realizar.
Ainda hoje, muitos professores de música preferem a abordagem fenomenológica da música. Analisar o fenômeno musical e suas regras de escrita antes de proporcionar a experimentação. Mal comparando, é como se, no início da alfabetização, o professor ensinasse gramática. 

Leitura Musical

Já há algum tempo, não acredito no ensino da teoria sem experimentação. Para mim, a compreensão só ocorre quando o aluno tem a capacidade de executar o que está proposto. Não estou dizendo cantar uma obra complexa, cheia de acordes, como um estudo de Chopin, mas, compreender frases musicais comuns, assim como compreendemos frases de livros, de jornais, ou do Facebook.
Aquela aula árida onde o professor explica o fenômeno, mas não estimula os alunos a experimentá-lo, já era! Para mim, é uma baita perda de tempo. Muitos professores, pela ausência ou deficiência de formação pedagógica, resolvem fazer desse jeito, formando legiões de pessoas que se consideram incapazes de fazer música, mas que, na verdade, foram mal orientadas. Interessante que, com o tempo, percebemos que, muitas vezes, esse modelo é adotado por professores que possuem sérias limitações musicais.
Observe como funciona a sua relação com a leitura de seu idioma. Você precisa olhar o dicionário a cada palavra que lê? Precisa olhar nos manuais de gramática cada regra de concordância verbal para compreender as frases? Quem chega a esse ponto na leitura convencional, é considerado, no mínimo, analfabeto funcional. Então, por que muitos esperam que a teoria musical pura, ou o uso do instrumento, trarão a solução para as dificuldades de leitura musical?

Instrumento

Se você espera que o instrumento traga a música de maneira eficiente, está muito enganado. Ele é um objeto inanimado e só responde ao comando de quem o toca. Se houver dificuldades rítmicas, simplesmente nada ocorrerá. E, se não souber o som que precisa retirar dele, como saberá se está tocando corretamente aquilo que está escrito?
A relação com o instrumento, neste caso, precisa ser, como o significado da palavra sugere, a de uma ferramenta que só é útil se corretamente usada. Não adianta querer usar uma chave de fenda com um parafuso philips. Você pode até conseguir aparafusar, mas vai dar muito mais trabalho e talvez não fique justo.

Imitação

Há quem diga que, se ouvir  a música antes, conseguirá tocar corretamente. Tudo bem. Mas concorde que, nesse caso, a leitura é limitada. Mal comparando, é como a mãe que lê a história para o filho e o mesmo, em seguida, a repete. Ele não tem autonomia na leitura, mas, com um empurrãozinho, os signos começam a fazer algum sentido. Ainda assim, muitos concordam que, embora esteja no caminho certo, numa situação como essa, a pessoa está longe de ler.
A imitação é uma ótima ferramenta de aprendizado, mas não podemos dizer que uma pessoa nesse estágio esteja alfabetizada. Aquele que realmente tem alguma autossuficiência na leitura musical, da mesma maneira que, ao ler uma frase de um livro, extrai-lhe o sentido, ao ler uma partitura, extrai a melodia proposta. Se ainda não chegou a esse ponto, acredite, você ainda não sabe ler música.

Tempo de Aprendizado

Há quem diga que nunca irá aprender, pois é muito difícil. De fato, é. Mas voltemos à análise da alfabetização regular. Tente lembrar quantos anos frequentou a escola. Quantos tempos de português havia em sua grade curricular até o segundo grau. Observe os erros de português que comete até hoje. Aprender a ler e escrever em português também é difícil e demanda muitos anos de estudo. Por que com a música seria diferente?

Solfejo

Voltando à problemática da teoria musical, eis a única solução para que faz sentido: o solfejo.
O solfejo nada mais é do que a leitura musical à vera. Explicar os fenômenos teóricos é enrolação. Se deseja aprender a ler música, deve partir para o solfejo. E dá para aprender a solfejar sem saber nada de música, inclusive sem saber tocar um instrumento. Se um professor disser que não é possível, é porque ele não se preparou para essa tarefa.
Muitos consideram que, sabendo tocar um instrumento, é possível ensinar tudo relacionado à música, no entanto, o ensino da leitura musical necessita da mesma expertise de um pedagogo. Alguém, nos dias de hoje, pensa em entregar a alfabetização dos filhos a alguém que não tenha formação em pedagogia? Com música não pode ser diferente.

Música e Língua Mãe

Os ouvintes sempre sabem o que é música. Ela acontece de maneira totalmente natural em nossa mente. Sabemos distinguir bem quando alguém está cantando ou recitando um texto. Esses códigos são claros em nossa sociedade. Por isso, com a música, devemos admitir a mesma relação que temos com a língua mãe. Precisamos partir do que nos é familiar para depois explorar campos mais complexos. Iniciamos pelo que faz mais sentido ao ouvido. As relações de tensão e repouso, de dissonância e consonância, a distribuição do som no tempo. Não podemos encher a pessoa de signos e nomes que não fazem nenhum sentido para ela.
Por que chamar a nota de semibreve se ela dura um compasso inteiro? Como pode algo que é menos que breve durar tanto tempo? Esses termos não fazem nenhum sentido para o leigo!! E se não forem devidamente contextualizados, não devem nunca ser utilizados!
Se as questões musicais básicas, como altura e ritmo, tensão e repouso, consonância e dissonância, subdivisão rítmica ainda são um mistério para o aluno, não adianta avançar. O ensino não será nada natural e o aprendizado será totalmente sintético e frágil. O resultado é um aluno que jamais se sentirá capaz de ler.

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Comentários

  1. Muito didático! Parabéns! Espero que incentive os leitores a estudar solfejo!

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  2. O texto em epígrafe trata algumas generalidades sem citações bibliográficas¹ (não cumpre aqui o modelo de texto acadêmico), havendo uma analogia do tema central tratado no mesmo (se a música deve ser aprendida partindo da teoria ou da prática, sendo esta última perspectiva a defendida pelo autor) com a discussão existente, ao nível da alfabetização, entre o método silábico (aquele que corresponde aqui ao aprendizado musical partindo da teoria) e o método global (aquele que corresponde aqui ao aprendizado musical partindo da práxis). Mas na verdade, esta é uma discussão que não nos leva a qualquer tipo de conclusão definitiva (a propósito disso se observe a defesa feita do método silábico na alfabetização pelo recém Secretário da Alfabetização, Carlos Nadalim, a qual nada mais é do que uma versão medíocre do discurso "back to basics"² em voga nos EEUU no final do século passado), sendo que a pesquisa tende a evidenciar ser mais relevante o domínio e familiaridade do profissional com o método que o mesmo usa do que a escolha do método em si. Na verdade, a tese defendida aqui neste «artigo» tem uma sustentação teórica na área da psicologia da música, nomeadamente na Teoria da Aprendizagem Musical de Edwin Gordon, editado nos EEUU pela GIA Publications (1993) e em Portugal, em versão portuguesa, pela Fundação Calouste Gulbenkian (2000). Mas na verdade, tudo, i.e., teoria e prática, são importantes e têm o seu próprio tempo. Desta forma, apesar do conceito de «audiação» (audiation, no Inglês) de Gordon exigir uma aprendizagem iniciada por uma vivência musical de preferência desde muito cedo (tal como acontece com a aprendizagem da língua materna), esta não dispensa, no momento oportuno, toda uma aprendizagem teórica. Na verdade, não há teoria sem prática, tal como não há prática sem teoria. Por isso, apesar de haver um ponto central nesta questão relevante (o que nos é preciso perguntar é o por quê de uma abordagem fortemente baseada na teoria e na fenomenologia musical ao invés de o ser na práxis, o que não se deve em exclusivo à falta de preparação pedagógica dos professores, sendo essa meramente uma das várias dimensões que influenciam esta questão), também é inútil uma guerra entre diferentes abordagens metodológicas (afinal, qual o melhor método de alfabetização: o silábico ou o global?), pois as pesquisas nos informam que mais importante do que o método em si é a competência do professor no seu uso. Não há um caminho único para se chegar ao aprendizado, tal como não há atalhos, i.e., uma aprendizagem musical séria, tal como a aprendizagem de uma qualquer língua, demanda sempre muito tempo, não havendo "métodos instantâneos" que permitam suprir essa necessidade do devir e do amadurecimento.

    ¹ Penso que mesmo num blogue se deve sempre procurar dar um embasamento teórico e bibliográfico, mesmo que de uma forma um pouco mais leve do que num texto acadêmico propriamente dito. É que afinal, a validação do que escrevemos e afirmamos estará sempre dependente desse mesmo embasamento teórico que é indicado através das referências bibliográficas, mesmo que escassas e apresentadas de forma não sistemática.

    ² Sobre o movimento "back to basics" na educação, tendo este estado em voga na década de 1970, voltou a ressurgir a partir dos finais do século passado nos EEUU (cf., entre outros, <"https://www.chicagoreporter.com/back-basics-through-years/">).


    REFERÊNCIAS

    Gordon, E. A music learning theory. Chicago: GIA Publications, 1993.
    Gordon, E. Introduction to research and the psychology of music. Chicago: GIA Publications, 1998.
    Gordon, E. Teoria da aprendizagem musical: Competências, conteúdos e padrões. Lisboa:
    Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.
    Gordon, E. Teoria da aprendizagem musical para recém-nascidos e crianças em idade préescolar. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2000.

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    1. Excelente colocação, Carlos Alberto.
      O objetivo desse texto é problematizar a exaltação à teoria como algo preponderante para o aprendizado musical. Parto do princípio que, apenas pelo uso da teoria, não chegaremos ao objetivo de leitura musical e que a experimentação é fundamental nessa parte. Concordo plenamente que não exista prática sem teoria e vice-versa. Concordo também que a teoria se apresenta aos poucos conforme a experiência ganha sentido. Na verdade uso isso na minha prática constante. A crítica aqui são aos professores que colocam a teoria acima da prática e não respeitam o tempo de entendimento do aluno, enchendo-os de conteúdo, mesmo que não tenham a capacidade de realizar.
      Apenas friso que o público aqui não é o acadêmico, mas o leigo que precisa da informação em textos curtos. O tempo da internet é outro e nem todos tem a mesma disposição de ler que nós acadêmicos. Peço que encare essa postagem como a expressão de uma opinião própria e não de exposição verdades absolutas que, logicamente, precisam de pesquisa embasada e de experiências mais rigorosas.
      Obrigado pelo comentário!! Um dos objetivos aqui é possibilitar a discussão e ampliar o leque de conhecimentos.
      Um abraço!!

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  3. Rafael, parabéns pelo texto. Para mim, um iniciante, certamente ajuda-me a refletir sobre "o que deveria vir primeiro": a prática ou a teoria.

    Não sou da área pedagógica mas entendo que a) teoria afastada da prática "não leva a nada", assim como prática sem teoria limita, e muito!

    Assim, arrisco a continuar, um bom professor de música é igual a um bom cozinheiro, que sabe do nível alimentar do comensal, usando o sal e o açúcar "a gosto"!

    Ou seja, um bom professor, sabe dosar a teoria com a prática! Quando a relação é professor x aluno isso torna-se mais fácil. A questão é quando há a relação entre professor x turma.

    Em tempo: gostei das observações do comentarista Carlos Alberto.

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    1. Olá,
      Este texto não tem como objetivo excluir a teoria, mas que não perca tempo com ela. Há pessoas que querem entender certos assuntos antes da hora e a única coisa que acontece é confundir cada vez mais. Para mim, o ponto de equilíbrio é se o aluno consegue compreender aquilo que é passado e executar. Se o aluno não consegue executar, ainda não está no ponto de seguir. É preciso que a leitura ganhe naturalidade. Gosto de observar a facilidade que temos de ler textos, penso que a fluência na leitura musical deve ocorrer da mesma forma ao ler melodias. Mas o caminho para isso, com certeza não é pela compreensão da teoria sem a conexão com a prática. Esse é o ponto colocado. Há professores que preferem ensinar toda a teoria antes de possibilitar a prática. Entender como funciona é uma coisa, saber como fazer é outra. Identificar as notas no pentagrama é simples, cantá-las conforme está escrito é um processo completamente diferente. Quem apenas identifica as notas está longe de ler. É como identificar letras ou sílabas nas palavras. Palavras carregam significados que estão além das letras e sílabas. Com música não é diferente.

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  4. Rafael, desculpe-me por não ter me identificado acima.
    Abraço.
    Em tempo: parabéns por ter "levantado a lebre" (sei que "isso não é politocamente correto", kkk).

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    1. Criei o blog pra isso mesmo. Aqui não é um lugar de "verdades". É um lugar de discussão.

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  5. Adorando ler os comentários e sempre aprendendo. Sou fã do método que o maestro Rafael Caldas utiliza para o ensino do solfejo e que não deixa de ensinar também teoria, mas no tempo certo e de forma gradativa. Meu depoimento é de uma aluna que nunca, em tempo algum, estudou música antes de se tornar (bem) adulta e senti imediata identificação com a metodologia usada, porque desde a primeira aula estava cantando, fazendo música e o mais importante: entendendo o que estava cantando (ritmo e som), o que é muito estimulante para continuar os estudos. Mas sei que cada ser humano é único e nem todos irão se identificar com o método, mas se um conselho pudesse dar, diria: estude solfejo, independente do método, se quer realmente entrar no mundo da música cantando e/ou tocando um instrumento. Ah, e um detalhe importante, creio: a vontade de aprender solfejo/teoria apenas surgiu após a prática do canto coral. Para quem realmente gosta, a vontade de aprender mais é muito natural. Por tudo isso, sou fã do processo prática-solfejo-teoria, nessa ordem, até que tudo fique junto e misturado, talvez chegando, quem sabe um dia, na tão esperada fluência na leitura musical.

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    1. Obrigado pelo feedback duplo! Texto e aulas. Isso dá força para seguir em frente.
      Um abraço!

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  6. Eu sei que chorar não resolve masss.
    Vou basear meu trabalho de conclusão nesse artigo.Ok?
    Poderei desenvolver com conhecimento de causa.
    Quanto ao solfejo vou apostar tudo.
    Parabéns Professor!

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    1. Bacana! Fico feliz em ter inspirado!
      Fique apenas atento que o texto não tem viés acadêmico, conforme Carlos Alberto Fernandes bem elucidou acima, mas apenas a expressão de uma opinião para a conscientização de leigos no assunto. No entanto o tema é pano pra manga: bastante polêmico e cheio de material a disposição. Boa pesquisa!

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